Science Tips 98 – Um modelo centenário da origem da vida obtém evidências consideráveis

Um modelo centenário da origem da vida obtém evidências consideráveis

Em 1924, o bioquímico russo Alexander Oparin declarou que a vida na Terra se desenvolveu através de mudanças químicas graduais de moléculas orgânicas na “sopa primordial”, que provavelmente existiu na Terra há 4 bilhões de anos. Na perspectiva dele, a combinação complexa de moléculas sem vida, conjugando forças em pequenas gotículas oleosas, podia assumir capacidades de vida autorreprodução, seleção e evolução. Essas ideias foram recebidas com dúvidas significativas que permanecem até hoje.

Uma “caminhada” em espaço de composição de um conjunto molecular do mundo de lipídios, exibida em três dimensões simplificadas. Um ponto na linha significa uma composição específica ao longo do eixo do tempo, de acordo com o qual as três coordenadas são quantidades de três diferentes tipos de moléculas. Um compossoma (fundo rosa) é um intervalo de tempo em que a composição permanece quase inal- terada, o que significa reprodução composicional.

Trinta anos depois, quando a estrutura do DNA foi decifrada, percebeu-se que essa molécula é capaz de realizar a autorreprodução, aparentemente solucionando o enigma da origem da vida sem recurso às gotículas de Oparin. Mas os críticos argumentaram que a vida exige não apenas replicadores, como também catalisadores enzimáticos para controlar o metabolismo. Decorreram mais 30 anos antes da descoberta de que o RNA, o principal componente na transferência de informação do DNA para proteínas, também pode ser uma enzima. Foi assim que nasceu o conceito de “Mundo de RNA”, de acordo com o qual a vida começou quando a sopa primordial originou uma ribozima, que pode simultaneamente se reproduzir e controlar o metabolismo.

Apesar disso, as dúvidas permaneceram, pois um ribossomo com capacidade de reprodução é uma molécula altamente complexa, com ínfima probabilidade de aparição espontânea na sopa. Isso conduziu
a um conceito alternativo – redes mutuamente catalisadoras, capazes de copiar conjuntos moleculares completos. Essa ideia reflete a combinação complexa em evolução de moléculas simples de Oparin, cada uma com alta probabilidade de surgir na sopa. Faltava gerar um modelo químico detalhado que ajudasse a fundamentar a narrativa.
O Prof. Doron Lancet e seus colegas do Departamento de Genética Molecular (Dept. of Molecular Genetics) do Instituto Weizmann de Ciência criaram esse modelo. Primeiro, foi necessário identificar
o tipo de moléculas apropriado que possa agregar e efetivamente formar redes de interações mútuas, em linha com as gotículas de Oparin. Lancet propôs lipídios, compostos oleosos que formam espontaneamente as membranas agregadas que delimitam todas as células vivas. Bolhas de lipídios (vesículas) podem crescer e se dividir tal como células vivas. Foi assim que Lancet gerou o conceito de “Mundo de lipídios” há duas décadas.
Para analisar as redes moleculares designadas, eles usaram ferramentas de biologia de sistemas e química computacional que permitiram incutir rigor no conceito um tanto efêmero de redes mutuamente catalisadoras.
Primeiro, abordaram em detalhe a pergunta importuna de como os conjuntos de lipídios podem armazenar e transmitir informação de uma geração que cresceu e se dividiu para outra. Encontraram uma noção raramente explorada até ao momento de que o que é transmitido são informações composicionais, e mostram como isso acontece através de simulações informáticas detalhadas. Além disso, indicaram uma semelhança profunda entre a cópia de composição e a maneira como as células vivas que crescem e proliferam preservam a sua informação epigenética, que depende da replicação do DNA.

Em um artigo recentemente publicado na Royal Society Interface, Lancet e seus colegas relataram uma análise sistemática da literatura, mostrando que os lipídios podem realizar catálise como as enzimas, de maneira semelhante aos ribossomos. Essa é uma propriedade fundamental para a formação das redes de interação mútua. Subsequentemente, os autores mostram, através do uso de ferramentas de biologia de sistemas e química computacional, que as gotículas oleosas podem acumular e armazenar informações composicionais e que, ao serem submetidas ao processo de fissão, transmitem a informação à descendência.
Com base no modelo informático que desenvolveram, os cientistas demonstraram que composições de lipídios específicas, designadas “compossomas”, podem sofrer mutações na sua composição, ser sujeitas à seleção natural em resposta a mudanças ambientais e podem mesmo ser submetidas à seleção darwiniana. O Prof. Lancet comenta que esse sistema de informação, baseado em composições e não na sequência de “letras” químicas como o DNA, remonta ao domínio da epigenética, onde os traços são herdados de maneira independente da sequência de DNA. Isso confere credibilidade à suposição dos cientistas de que a vida poderia surgir antes da chegada do DNA e do RNA. Na realidade, eles retratam no artigo um caminho químico que conduz à aparição de material genético no contexto das gotículas oleosas.

O conceito de “Mundo de lipídios” de Lancet está associado à questão de ter havido ou não moléculas hidrofóbicas oleosas em quantidade suficiente na sopa primordial. Os cientistas também descrevem uma pesquisa literária exaustiva, de acordo com a qual existe uma elevada probabilidade de as moléculas estarem presentes no período inicial da Terra. Essa conclusão foi apoiada por um estudo muito recente que mostra que Encélado, uma das luas de Saturno, tem um oceano subglacial (oceano primordial) repleto com compostos hidrofóbicos, alguns dos quais poderiam formar gotículas semelhantes às do “Mundo de lipídios”. O Prof. Lancet afirma que essas constatações, juntamente com cálculos baseados em modelos inovadores, mostram que a probabilidade do surgimento da vida é relativamente alta, inclusive a possibilidade empolgante de que a Encélado abriga atualmente algumas formas de vida primárias baseadas em lipídios.

 

O Prof. Lancet é responsável pela Cadeira Professoral Ralph D. e Lois R. Silver de Genômica Humana.